“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”
“Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...”.
Clarice Lispector
Da segurança e do desespero.E nunca uma dessas paixões acompanha o desejo sem que não deixe algum lugar à outra: pois, quando a esperança é tão forte que expulsa inteiramente o temor, ela muda de natureza e se chama segurança ou confiança; e, quando estamos certos de que aquilo que desejamos advirá embora continuemos a querer que advenha, deixamos, no entanto, de ser agitados pela paixão do desejo, que levava a buscar com inquietação sua ocorrência; do mesmo modo, quando o receio é tão extremo que tira todo lugar à esperança, converte-se em desespero; e esse desespero, representando a coisa como impossível, extingue inteiramente o desejo, o qual só se dirige às coisas possíveis.Da esperança e do temor.A esperança é uma disposição da alma para se persuadir de que advirá o que deseja, a qual é causada por um movimento particular dos espíritos, a saber, pelo da alegria e do desejo misturados em conjunto; e o temor é outra disposição da alma que a persuade de que a coisa desejada não advirá; e é de notar que, embora essas duas paixões sejam contrárias, é possível tê-las as duas juntas, a saber, quando se representam ao mesmo tempo diversas razões, das quais umas fazem julgar que a realização do desejo é fácil e outras a fazem parecer difícil.Da ingratidão.Quanto à ingratidão, não é uma paixão, pois a natureza não pôs em nós nenhum movimento dos espíritos que a excite; mas é apenas um vício diretamente oposto ao reconhecimento, na medida em que esse é sempre virtuoso e um dos principais laços da sociedade humana; eis por que tal vício só pertence aos homens brutais e tolamente arrogantes que pensam que todas as coisas lhes são devidas, ou aos estúpidos que não fazem nenhuma reflexão sobre os benefícios que recebem, ou aos fracos e abjetos que, sentindo a sua imperfeição e as suas necessidades, procuram baixamente o socorro dos outros, e, depois de havê-lo recebido, odeiam-nos, porque, não tendo vontade de lhes prestar outro semelhante, ou não tendo esperança de podê-lo, e imaginando que todo mundo é tão mercenário como eles e que não se pratica nenhum bem exceto com esperança de ser por ele recompensado, pensam que os enganaram.Da indignação.A indignação é uma espécie de ódio ou de aversão que se nutre naturalmente contra os que praticam algum mal, de qualquer natureza que seja; e muitas vezes está misturado com a inveja ou com a compaixão; mas seu objeto é totalmente diferente, pois só ficamos indignados contra os que fazem o bem ou o mal às pessoas que não o merecem, mas temos inveja dos que recebem esse bem, e sentimos compaixão pelos que recebem esse mal. É verdade que de alguma maneira representa praticar o mal possuir um bem de que não se é digno; o que foi talvez a causa pela qual Aristóteles e seus seguidores, supondo que a inveja é sempre um vício, deram o nome de indignação à que não é viciosa.Da cólera.A cólera também é uma espécie de ódio ou de aversão que alimentamos contra os que praticaram algum mal, ou procuraram prejudicar, não indiferentemente a quem quer que seja, mas particularmente a nós. Assim, contém tudo o que a indignação contém e ainda mais o fato de fundar-se numa ação que nos toca e de que desejamos nos vingar; pois esse desejo a acompanha quase sempre; e ela é diretamente oposta ao reconhecimento, como a indignação ao favor; mas é incomparavelmente mais violenta que essas três outras paixões, porque o desejo de repelir coisas nocivas e de se vingar é o mais imperativo de todos. O desejo unido ao amor que se tem por si próprio é que fornece à cólera toda a agitação do sangue que a coragem e a ousadia podem causar; e o ódio faz que seja principalmente o sangue bilioso, vindo do baço e das pequenas veias do fígado, que receba esta agitação e entre no coração, onde, devido à sua abundância e à natureza da bile a que está misturado, excita um calor mais áspero e mais ardente do que o que podem aí excitar o amor ou a alegria.Do arrependimento.O arrependimento é diretamente contrário à satisfação de si próprio, e é uma espécie de tristeza proveniente de se julgar que se praticou qualquer má ação; e é muito amarga, porque sua causa procede apenas de nós; o que não impede, no entanto, que seja muito útil quando é verdade que a ação de que nos arrependemos é má e quando temos disso um conhecimento certo, visto que ela nos incita a proceder melhor outra vez. Mas acontece muitas vezes que os espíritos fracos se arrependem de coisas que praticaram sem saber seguramente que eram más; persuadem-se disso unicamente porque o temem; e se houvessem feito o contrário, arrepender-se-iam da mesma maneira: o que constitui neles uma imperfeição digna de compaixão; e os remédios contra esse defeito são os mesmos que servem para sanar a irresolução.Descartes