quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Paixões da alma

Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”



Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...”.


Clarice Lispector



Da segurança e do desespero.
E nunca uma dessas paixões acompanha o desejo sem que não deixe algum lugar à outra: pois, quando a esperança é tão forte que expulsa inteiramente o temor, ela muda de natureza e se chama segurança ou confiança; e, quando estamos certos de que aquilo que desejamos advirá embora continuemos a querer que advenha, deixamos, no entanto, de ser agitados pela paixão do desejo, que levava a buscar com inquietação sua ocorrência; do mesmo modo, quando o receio é tão extremo que tira todo lugar à esperança, converte-se em desespero; e esse desespero, representando a coisa como impossível, extingue inteiramente o desejo, o qual só se dirige às coisas possíveis.
Da esperança e do temor.
A esperança é uma disposição da alma para se persuadir de que advirá o que deseja, a qual é causada por um movimento particular dos espíritos, a saber, pelo da alegria e do desejo misturados em conjunto; e o temor é outra disposição da alma que a persuade de que a coisa desejada não advirá; e é de notar que, embora essas duas paixões sejam contrárias, é possível tê-las as duas juntas, a saber, quando se representam ao mesmo tempo diversas razões, das quais umas fazem julgar que a realização do desejo é fácil e outras a fazem parecer difícil.
Da ingratidão.
Quanto à ingratidão, não é uma paixão, pois a natureza não pôs em nós nenhum movimento dos espíritos que a excite; mas é apenas um vício diretamente oposto ao reconhecimento, na medida em que esse é sempre virtuoso e um dos principais laços da sociedade humana; eis por que tal vício só pertence aos homens brutais e tolamente arrogantes que pensam que todas as coisas lhes são devidas, ou aos estúpidos que não fazem nenhuma reflexão sobre os benefícios que recebem, ou aos fracos e abjetos que, sentindo a sua imperfeição e as suas necessidades, procuram baixamente o socorro dos outros, e, depois de havê-lo recebido, odeiam-nos, porque, não tendo vontade de lhes prestar outro semelhante, ou não tendo esperança de podê-lo, e imaginando que todo mundo é tão mercenário como eles e que não se pratica nenhum bem exceto com esperança de ser por ele recompensado, pensam que os enganaram.
Da indignação.
A indignação é uma espécie de ódio ou de aversão que se nutre naturalmente contra os que praticam algum mal, de qualquer natureza que seja; e muitas vezes está misturado com a inveja ou com a compaixão; mas seu objeto é totalmente diferente, pois só ficamos indignados contra os que fazem o bem ou o mal às pessoas que não o merecem, mas temos inveja dos que recebem esse bem, e sentimos compaixão pelos que recebem esse mal. É verdade que de alguma maneira representa praticar o mal possuir um bem de que não se é digno; o que foi talvez a causa pela qual Aristóteles e seus seguidores, supondo que a inveja é sempre um vício, deram o nome de indignação à que não é viciosa.
Da cólera.
A cólera também é uma espécie de ódio ou de aversão que alimentamos contra os que praticaram algum mal, ou procuraram prejudicar, não indiferentemente a quem quer que seja, mas particularmente a nós. Assim, contém tudo o que a indignação contém e ainda mais o fato de fundar-se numa ação que nos toca e de que desejamos nos vingar; pois esse desejo a acompanha quase sempre; e ela é diretamente oposta ao reconhecimento, como a indignação ao favor; mas é incomparavelmente mais violenta que essas três outras paixões, porque o desejo de repelir coisas nocivas e de se vingar é o mais imperativo de todos. O desejo unido ao amor que se tem por si próprio é que fornece à cólera toda a agitação do sangue que a coragem e a ousadia podem causar; e o ódio faz que seja principalmente o sangue bilioso, vindo do baço e das pequenas veias do fígado, que receba esta agitação e entre no coração, onde, devido à sua abundância e à natureza da bile a que está misturado, excita um calor mais áspero e mais ardente do que o que podem aí excitar o amor ou a alegria.
Do arrependimento.
O arrependimento é diretamente contrário à satisfação de si próprio, e é uma espécie de tristeza proveniente de se julgar que se praticou qualquer má ação; e é muito amarga, porque sua causa procede apenas de nós; o que não impede, no entanto, que seja muito útil quando é verdade que a ação de que nos arrependemos é má e quando temos disso um conhecimento certo, visto que ela nos incita a proceder melhor outra vez. Mas acontece muitas vezes que os espíritos fracos se arrependem de coisas que praticaram sem saber seguramente que eram más; persuadem-se disso unicamente porque o temem; e se houvessem feito o contrário, arrepender-se-iam da mesma maneira: o que constitui neles uma imperfeição digna de compaixão; e os remédios contra esse defeito são os mesmos que servem para sanar a irresolução.
Descartes

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Mais uma vez, era apenas eu


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Comecei a ver aquele sorriso.

Pele queimada, porém de tom amarronzada por genética. Olhos vivos e escuros. Cabelo liso, preto. Sorriso perfeito e dentes brancos. Sim, era eu. Tinha 14 anos. havia fugido, sumido, deixado minha família já fazia um tempo. Eu vivia só, mas isso era o que os outros achavam. E tinha o deserto, éramos eu, o deserto e o Najima, meu camelo. Eu trabalhava levando produtos de uma cidade a outra, pelo deserto. Conhecia tudo, as rotas, a vida, o sol, a lua, as estrelas. E a solidão. Eu era feliz, sim, eu era. Não pense que era triste. Eu, soube depois, optei por isso, pelas dores carregadas em outras oportunidades nas relações com as pessoas. Não aguentaria mais ser deixado, abandonado, ou viver em culpa. Então nessa, fiz esse movimento natural e feliz.

Vejo meus pés, na sandália de couro, surrada, e a areia quente. Olho pra baixo e depois para o horizonte. Quase posso sentir o sol tocando minha pele enquanto vejo isso.

O melhor é a noite no deserto. O silêncio, as estrelas, tudo me traz calma. Sim, as vezes me sinto só. As vezes sinto algo no meu coração, uma saudade que eu não consigo entender. Nessas horas perco minha visão no horizonte e não entendo bem o porque, sinto uma falta que foge na algo tangível.

Mas esses momentos me trazem uma ligação com algo que não poderia esquecer, mas apenas deixar para depois. Ali, a solidão me faz companhia e meu sorriso branco e perfeito são costumeiros. Seja por cumprimentar aqueles que passam por mim, raros, nos trajetos alongo do deserto, ou nas vilas que eu atravessava na minha rotina de vida.

Lembro de ser também bem calado,e  quase não falar, até porque não tinha ninguém. Pelo que me lembro, deixei minha família para tentar uma vida melhor e buscar algo....nunca soube o que era.

Numa das minha rotineiras viagens, eu segui as rotas normais, e me descuidei.  Parei num oásis, que eram geralmente algo de ladrões e saqueadores. Achei que não teria problema, se fosse rápido. Meu camelo precisava parar um pouco, eu havia errado a hora de saída e me atrasei. tive que mudar a parada, alonga outra, e ali estava eu. Eu tinha 16 anos. Sim, só 16. Minha pele morena, cabelo liso e caído no rosto, dividido ao meio, tinha as pontas queimadas do sol.

Quando percebi ele, vindo de trás dos arbustos, ele já estava a um braço de mim. Não tive reação e apenas senti aquela lâmina, curva, entrando no meu abdômen, do lado esquerdo. Quando olhei nos olhos deles, estavam sem vida, cínicos, vazios. Acho que isso me cortou muito mais. Uma inexpressão pela aquela ação que me senti morrendo. Eu perguntava, calado, o porque? Ele calado, respondia, por nada, apenas por ter que ser. Ao puxar o punhal meu corpo caiu junto para frente. Um frio tomou conta de cada parte de mim. Vi ele carregando meu camelo sem nem ao menos olhar para trás, assim, sem nenhuma cerimônia, foi indo. Eu, ali, imóvel sentindo o gosto de sangue na boca e da areia, só me sentia, cada vez mais cansado....fui fechando os olhos, aos poucos vendo areia, apenas a areia.

- Você não vai levantar daí?
Essa voz apareceu do nada e eu não conseguia identificar quem era o seu dono.
- Vamos, você já pode levantar....
Como assim? Ele não vê como estou?
- Sim, eu vejo, mas te digo, você já pode levantar!
Perai como ele me escutou? Fui levantando e olhando para atrás de onde estava vindo a voz. Ali vi um senhor, de branco, inclusive um turbante branco que acenava para mim ir ate ele.
- Venha, vamos ver o por do sol, aquela hora única do deserto onde o dia se encontra com a noite.
E realmente, era um momento único. Por aproximadamente 10 minutos o espetáculo se fez presente e inundou meus olhos de uma riqueza que me afeta e nutre até hoje.
- Vamos Radij, temos que ir.
- Como assim? Preciso ir atrás do meu camelo! Eu respondi
- Não mais, aqui não é mais um lugar para você, logo, se encontrarem seu corpo, nada será feito e se não acharem o mesmo acontecerá. Vamos seguir.
Olhei para onde estava caído e me vi lá,e  então entendi tudo. Eu tinha morrido.
- Vamos, não se preocupe, vamos em frente....

Assim a visão se foi e o deserto foi ficando para trás, e aquela vida onde a solidão foi minha companheira, também.


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Yesterday



Yesterday
All my troubles seemed so far away
Now it looks as though they're here to stay
Oh, I believe in yesterday
Suddenly
I'm not half the man I used to be
There's a shadow hanging over me
Oh, yesterday came suddenly
Why she had to go I don't know
She wouldn't say
I said something wrong now I long
For yesterday
Yesterday
Love was such an easy game to play
Now I need a place to hide away
Oh, I believe in yesterday
Why she had to go I don't know
She wouldn't say
I said something wrong now I long
For yesterday
Yesterday
Love was such an easy game to play
Now I need a place to hide away
Oh, I believe in yesterday

É agora ou nunca...