quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Você, a única razão!






Nada demais. De repente como se fosse um simples ato de lembrar, uma escolha, imagens voltam a se formar. Como se eu simplesmente escolhesse lembrar ou não lembrar. A questão é, e sempre será, eu imagino isso, desejo isso, crio isso, ou simplesmente acredito e assim abro espaço para que voltem a minha atual consciência. Se é assim, tudo bem, novamente me permito ver, rever, te ver. O Coração guia os passos.

Novamente vejo meus pés, sob uma estrada de cascalhos. Sapatos velhos e desgastados, meus olhos fixam nessa estrada. Eu pareço guardar imagens pois fico olhando para a estrada que segue ao horizonte. Me percebo calmo, mas pareço esperar algo, alguém. Ao horizonte percebo e vinda e a aproximação. Cada vez mais se aproxima. Eu praticamente já sei o que vai dizer.
- Não me olhe assim, não me atrasei tanto.
- Não se atrasou como da ultima vez, mas você não conseguiu chegar na hora. Sabe como o padre faz cara feia quando nos atrasamos para a missa.
- Ahh, André, só você mesmo para me tirar de casa nessa manhã tão linda de domingo para escutar o padre Alfredo repetindo as mesmas pregações. E ele nem lembra que as repete...
 Nesse momento seus cabelos levemente cacheados e loiros se mexem, harmonicamente com o vento enquanto seu sorriso ilumina e me faz esquecer qualquer atraso. Você sempre foi o motivo para que eu continuasse qualquer coisa, suportasse qualquer coisa, minha maior razão. Essas lembranças hoje não me bastam, mas ainda, elas, seu rosto, seu sorriso, sua alegria sua ingenuidade me fazem sangrar pois não há mais graça, nem motivos para eu permanecer aqui.
Essas são as lembranças que carrego, e nesta ultima tentativa, meu desabafo, meu reconhecimento, minha loucura. Esses são os momentos que guardo de você, de nós, do pouco tempo para mim que foi ter vocês....

Lembro daquela manhã. Lembro de cada detalhe daquela manhã e de tantas outras.

- Vamos, apresse o passo André, se não vamos chegar atrasados e o Padre Alfredo vai reclamar....ahahahahahahah

- Você sempre faz piada sobre isso, venha cá, agora você corre né?!!!!

Você sempre brincava com tudo, sempre via tudo com esse seu olhar de menina, pelo menos até aquele dia...


Quando adentramos na pequena igreja, não foi impossível prever a cara do padre a nos ver entrando, atrasados e juntos. Quer dizer, todos na nossa comunidade sempre nos viam juntos, e isso não era estranho, e sempre às missas estávamos atrasados, e isso também não era estranho. Sim, nossos pais estavam lá, e  para avariar sentados juntos na mesma fileira. Minha irmã caçula, e seu irmão um ao lado do outro.

- Deus, meus filhos, tem sempre um motivo maior nas suas ações, e precisamos aceitar isso

Nunca lembrei de uma só pregação do padre Alfredo, mas essa não me deixa um dia sequer....

Incrível como nosso primeiro beijo aconteceu. Nunca, eu acho, você poderia esperar aquela atitude minha, pois, como certa vez tinha me revelado, sempre me via como o amigo que desde nossos 8 anos de idade convivíamos juntos. Para mim era natural. Inclusive desde os 15 anos eu já percebia você diferente para mim. Você, é claro, sempre brincalhona, não percebia meus olhares e as muitas vezes que ao tocar sua mão, já era com outra conotação. Eu não tinha coragem, pois tinha medo da sua reação. Apesar de frequentarmos a mesma escola da comunidade, ficávamos mais "livres" de tarde, após as tarefas. Quando nos encontrávamos debaixo da mesma árvore na subida do morro, a esquerda da sua casa. De lá, víamos e escutávamos todos. As casas, as pessoas, as conversas. Lembro que adorávamos fingir conversas entre as pessoas, e como isso nos divertia. Foi numa oportunidade dessa, quando falávamos nos fazendo ser pelo Senhor Albert e a senhora Luíza, que te beijei, eu nunca esqueço.

- Ali André. O Senhor Albert de novo esta levando flores para Dona Luíza. Vai, começa vai...
- Tá, tá....." hummm, será que dessa vez ela vai gostar dessas flores, da ultima ela passou mal com o cheiro...deixa eu apressar o passo....."
- Ele vai chamar ela lá fora André, vai vai....
- Tá bemmm....." hummm Luizinhaaaa, minha flor vem aqui fora ver uma coisa" - Sua vez, a Dona Luíza vai sair....
- Tá, sou eu.... " Oi Albertinho, você já chegou. O que foi?"Você André..
- Sim..." Luizinha, olha aqui o que eu trouxe pra você !
- O que foi dessa vez Albertinho? Ahhhhh que lindas, são margaridas, EU AMO MARGARIDAS!!! me dá uma bitoca Albertinho...Vai André ...
- hum?...

Quando te vi olhando para o casal e esticando os lábios pra mim não pude deixar, ou apenas me fiz de bobo. A questão é que a reação a isso foi explosiva. Acho que por um minuto você achava ou ficou pensando se eu estaria no "papel". A questão é, que quando se deu conta que eu nem mais me importava com o Casal lá embaixo, sua reação foi de surpresa e espanto.
- Você tá doido???? por que?André?


Vi você se afastando de forma tão assustada que vários medos me tomaram naquele dia......



Fiquei alí, olhando para você se afastar. Depois me perdi olhando o horizonte. Dialogava comigo mesmo me perguntando se tinha feito o certo. Prometi que não tentaria nunca mais te beijar sem que percebesse que você realmente queria. Olhei o por do Sol como fazíamos, eu nunca deixei de fazer isso....

No dia seguinte, eu acordei, e me perguntei se era verdade ou se eu teria sonhado com aquilo. Fiquei por um momento confuso. Já era hora da escola então em apressei. Lembro de que ao não te ver na escola meus medos foram aumentados. Quase não prestei atenção nas aulas.
O Dia passou de forma lenta e preguiçosa. Eu aguardava loucamente a hora de ir para a árvore.  O caminho da minha casa até lá não passava perto da sua casa, e  só conseguia ver a árvore no alto do morro quando já estava perto. Quando meus olhos começaram a ver a pedra que sentávamos vazia, meu coração doeu. Me aproximei com passos pesados e muito cabisbaixo. Acho que por isso não percebi nada. Sentei de costas para sua casa, olhando para o horizonte contrário, vendo a árvore a minha direita e o resto do vilarejo.

- André?

Aquela voz suave, e com um tom medroso, me tirou do desânimo.  Quando virei meus olhos, te vi levantando-se de "trás" da pedra. Não tinha te visto ali.

- Oi, Oi Ana. Você estava aí? Eu não te vi.
- Sim, na hora de sempre né?
- É...na hora de sempre, Ana...deixa eu te falar...
- André....

Engraçado na hora não percebi. Mas você estava diferente. Mais Séria. Você me olhava diferente.

- oi Ana. o que foi?
- Eu não entendi aquilo
- Aquilo?
- Sim o beijo
- Ana, se você não entendeu algo tão fácil de entender, o que eu poderia explicar?
- Mas André....

Lembro que você parecia confusa...

- André preciso entender isso. Vim aqui pra te dizer isso. Assim que eu entender eu te procuro...

Você, nos momentos mais difíceis sempre pedia um tempo para pensar. E seus olhos mostravam o quanto estava confusa....


Sabe, agora, aqui percebo uma ironia nisso tudo. Que muitos momentos foram especiais, quando estava aflito por você não estar presente de verdade, mas por sua companhia estar comigo independente de estar fisicamente. Acho que essa ideia me conforta.

Acho que isso é amar. Isso é o que o amor significa de verdade.

Bem, foram alguns dias estando só. No inicio era estranho, mas depois passei a acostumar. Ia todos os dias até a "nossa" árvore e sentava na mesma pedra, como fazíamos. Não deixei o ritual. Até que um dia, ao subir vi sua silhueta sentada na pedra. Me aproximei com passos vagarosos mas com o coração acelerado. Em mim uma certeza. Era hora de resolver tudo. Forjei, nos passos que restavam falas e palavras elaboradas para qualquer situação que fosse acontecer. Estava preparado. Pronto. Era agora. Chega de esperar. As pernas tremeram quando estava atras de você. Quero voltar. Não vou conseguir. Sentei ao seu lado. Você já tinha me visto. Silêncio. Olhos no horizonte. Você vidrada no horizonte. Eu nervoso. Olhando e fingindo calma. Afinal, que isso? Porque desse silencio? Será que é algo bom? Ou não? Vou falar. Não vou esperar. Ela tem que ter o espaço dela. Tudo bem. Mas e eu?
Mas, e se, será?

- Ana, queria ....

Não foi preciso terminar a frase. Você se virou e me beijou. Simples como o momento pedia, perfeito como hoje penso ter sido, normal para quem não viveu o momento.

- Ana....
- André é o natural a acontecer. Eu estava confusa e não via. Mas depois percebi que é você e sempre foi......
Desde esse dia, os 4 anos seguintes foram de sonhos, brigas, algumas, e muito companheirismo. Claro, quando conversamos com os nossos pais, houve um temor inicial, mas depois eles se acostumaram com a ideia. Inclusive com o passar dos anos, até começaram a planejar o que seria nosso casamento. Você se lembra desse dia? Como eu poderia esquecer. Lembra quando comunicamos nossos pais que sentíamos que era a hora? Até porque tínhamos planejado apenas termos algo mais sério, intimamente, depois do casamento. Eles começaram a planejar, onde seria a cerimônia, falaram dos detalhes, e nós impomos uma condição. teria que ser lá, no alto, na subida, na nossa árvore, ao lado da pedra. Local o qual fazia parte da nossa história.
Aquele dia foi realmente diferente. Primeiro porque tudo estava tão perfeito. Nossa família, nosso lugar, você vestida de branco, com uma tiara branca na cabeça. Seu sorriso fazia tudo ficar mágico. Escolhemos o por do sol.E foi lindo.

- André aceita Ana Clara como sua esposa....
- Aceito!
Ana Clara, aceita André como seu esposo....
- Desde sempre!

Nunca esquecerei sua resposta!

Vivemos sonhos, sorrisos, dividimos responsabilidades, brigamos, choramos e depois de 5 anos, você pediu para te encontrar no alto do morro, no nosso lugar, que era também o quintal da casa que nossos pais construíram para nós. Não entendi bem, mas fui lá, no fim da tarde.

- Clara, não entendi bem? Não poderíamos nos encontrar lá em casa?
- André, tudo de especial vivemos aqui, não foi?
- Sim, mas...
- Então, porque eu iria te contar que não seremos mais só eu e você em outro lugar?
- Hum? Eu?Você?...
- Sim André, somos eu, você e nosso bebê, estou grávida!
- Sério? Meu Deus, sim, sim, não poderia ser em outro lugar....

Aquele dia talvez tenha sido o dia mais feliz, depois do nosso casamento. ainda ficamos ali, sonhando, planejando e vivendo....


Foram 8 meses, quase 8 meses desse sonho. Engraçado, lembrando agora, lembro de você cada vez mais cansada e com mais vontade de estar deitada ou sentada. Eu achava isso normal. Até que você sentiu um forte dor no pé da barriga. Já tinham se passados quase o tempo para o nascimento. Você se contorcia e pedia para chamar sua mãe. Eu corri e chamei....Deus, como sair e te deixar caída na sala se contorcendo de dor? Quando eu e sua mãe chegamos, pediu que eu chamasse o Dr. Antônio e a parteira Ana. Fui o mais rápido que podia. Na volta, minha mãe ajudava a sua, já com você no nosso quarto. Meu Pai e o seu pai do lado de fora da casa, com olhares preocupados e sorrisos amarelos, tentando espantar o que os olhos mostravam. Não me deixaram entrar com o Dr. nem com dona Ana. Seus gritos não diminuíram. Seus gritos não diminuíam.  Minha angústia só aumentava. Nem sei ao certo quanto tempo passou. Até que um silêncio mórbido se instalou. Eu entrei, sem saber ao certo, sem ser chamado, entrei. Nossas mãe se abraçavam e choravam. Nossa menina, na mão da dona Ana, sem vida, e você, ainda, com a vida escapando, olhou para mim, e disse:

- André, me perdoe....

E foi assim, que por breves momentos vivi, respirei e sonhei você...